Falando de cinema, a temporada de festas tem sido historicamente um terreno de conforto previsível. Durante décadas, a indústria alimentou uma audiência global com uma dieta constante de vilarejos nevados fictícios, príncipes europeus incógnitos e padarias à beira da falência que só podem ser salvas pelo espírito comunitário. No entanto, o cenário do entretenimento via streaming, liderado por gigantes como a Netflix, começou a detectar um cansaço com essa fórmula açucarada. A resposta a essa saturação não é abandonar o Natal, mas reconfigurá-lo.
É neste contexto de reinvenção de gênero que aterrissa Feliz Assalto! (título original: Jingle Bell Heist), uma produção que promete injetar adrenalina, cinismo urbano e realidade econômica no tecido habitual das festividades. Produzido por Matt Kaplan (ACE Entertainment) em colaboração com a TeaShop Films, este filme não se limita a decorar um roubo com enfeites natalinos; trata-se de uma proposta híbrida que funde a mecânica precisa dos filmes de assalto (caper movie) com os ritmos emocionais da comédia romântica. Ao situar a ação em uma Londres vibrante, chuvosa e autêntica, o longa busca uma textura visual e narrativa que parece decididamente moderna. Estrelado por Olivia Holt e Connor Swindells, o filme se afasta dos clichês de personagens que buscam o amor, apresentando-nos, em vez disso, protagonistas que buscam, acima de tudo, estabilidade financeira e justiça trabalhista, encontrando o romance apenas como um “efeito colateral” não calculado de sua atividade criminosa.
O crime como necessidade social
Ao contrário das narrativas tradicionais onde o conflito costuma ser emocional ou logístico, Feliz Assalto! estabelece um conflito profundamente econômico e sistêmico. A história segue dois protagonistas da classe trabalhadora, Sophia e Nick, presos nas fendas de uma economia moderna implacável. O objetivo não é abstrato: eles têm na mira 500.000 libras (cerca de 600.000 euros) escondidas no cofre das Lojas Sterling, propriedade do magnata local Maxwell Sterling. Eles não buscam enriquecer por ganância; buscam recuperar o que o sistema lhes negou.
O roteiro, coescrito por Abby McDonald e Amy Reed, constrói uma base moral sólida e complexa. Sophia (Olivia Holt) é uma expatriada americana em Londres com uma missão nobre: cuidar de sua mãe após um diagnóstico de câncer. O conflito explode quando o seguro saúde se recusa a cobrir o tratamento e Sophia, com múltiplos empregos e exausta, vê no roubo a única saída para salvar a mãe. Seu arco dramático a levará da impotência total à autonomia pessoal, aprendendo a confiar novamente após a decepção sistêmica.
O Encontro: Inimigos, Aliados, Amantes
A estrutura do filme segue o arquétipo de “aliados à força”. Nick (Connor Swindells), um especialista em segurança que caiu em desgraça e se reconverteu em funcionário de manutenção, descobre Sophia tentando roubar seu próprio chefe tirânico. Em vez de entregá-la, Nick vê uma oportunidade. Ele também tem seus próprios demônios: é um pai recém-divorciado que precisa desesperadamente de fundos para garantir o bem-estar da filha. Sua jornada pessoal trata de recuperar a autoestima profissional e abrir-se ao amor após o fracasso matrimonial.
A dinâmica se estabelece sob uma tensão dupla: a execução técnica do assalto à loja de departamentos mais notória de Londres e a tensão interna de dois desconhecidos que devem confiar cegamente um no outro. Cada um traz uma habilidade especial para a equipe: Sophia utiliza sua astúcia e rapidez de mãos (prestidigitação), enquanto Nick contribui com o conhecimento técnico dos sistemas de segurança e o acesso físico ao prédio. A narrativa sugere que o verdadeiro “roubo” não é apenas o do dinheiro, mas o de uma segunda chance na vida.
No lado oposto do tabuleiro encontram-se os antagonistas. Lucy Punch interpreta Cynthia Sterling, a herdeira e proprietária, cuja motivação principal é manter seu status e opulência, representando o poder institucional desconectado da realidade. Ao lado dela, Peter Serafinowicz encarna Maxwell Sterling, o magnata corporativo que controla o alvo do roubo e personifica o obstáculo final para nossos protagonistas.
O Talento: Elenco e química transatlântica
Olivia Holt assume o papel de Sophia misturando comédia física e drama. Para este papel, Holt teve que aprender uma habilidade técnica real: o ilusionismo. Ela trabalhou intensamente com um mágico profissional no início das filmagens para aprender a ser “rápida com as mãos”. Embora admita com humildade que sua grande especialidade se limita a fazer moedas desaparecerem e reaparecerem, essa preparação física é crucial para vender a verossimilhança das sequências de roubo sem depender excessivamente dos efeitos visuais.
Connor Swindells (Sex Education) traz uma energia complementar. Seu personagem, Nick, projeta dureza física, mas esconde uma profunda fragilidade emocional devido à sua situação familiar. Swindells expressou seu entusiasmo em participar de um projeto “bobo e alegre”, uma mudança de ritmo em relação a dramas mais intensos. A química entre os dois foi forjada nas longas noites de filmagem invernal em Londres, onde a exaustão resultou em ataques de riso e uma genuína camaradagem.
O elenco de apoio é fundamental para o tom cômico e satírico. Lucy Punch é especialista em interpretar personagens privilegiados e socialmente desajeitados, servindo como contraponto cômico perfeito. Peter Serafinowicz, como o dono da loja, traz uma presença imponente que oscila entre o intimidador e o ridículo. O ecossistema da loja de departamentos se completa com talentos como Michael Salami no papel de Ralph, Poppy Drayton como Brianna e Natasha Joseph interpretando Rita, que dão vida e veracidade ao ambiente de trabalho que cerca o assalto.
Roteiro e Direção
O roteiro, escrito por Abby McDonald (autora prolífica e roteirista de Bridgerton), tem um pedigree notável: foi incluído sob seu título original na Black List de 2022, a lista dos melhores roteiros não produzidos de Hollywood. Isso sugere uma qualidade narrativa que vai além do padrão do gênero, priorizando diálogos afiados e situações engenhosas em vez de sentimentalismo barato.
A direção fica a cargo de Michael Fimognari, conhecido pela trilogia Para Todos os Garotos que Já Amei (To All The Boys), mas também por sua extensa colaboração no gênero de terror com Mike Flanagan (A Maldição da Residência Hill). Essa combinação inusitada promete um filme visualmente rico, capaz de lidar com a tensão do assalto com o calor do romance, utilizando a iluminação e a atmosfera de uma maneira mais sofisticada do que o típico filme de Natal para a televisão.
Produção, Música e Locações
Um aspecto que eleva essa produção acima da média é a sua parte musical. A trilha sonora original fica por conta de Steve Hackman, um compositor, maestro e DJ conhecido por seus ousados mashups orquestrais como Brahms X Radiohead ou Beethoven X Beyoncé. Feliz Assalto! marca sua estreia na composição de música para longas-metragens, o que promete uma partitura fresca e eclética que rompe com as canções natalinas tradicionais. Além disso, o filme conta com uma “contratação” estelar para suas canções: o ícone pop Gwen Stefani contribui com duas faixas originais exclusivas para a fita, intituladas “Shake the Snow Globe” e “Hot Cocoa”. Essa injeção de pop de alto perfil sublinha a aposta da Netflix em transformar o filme em um evento da cultura pop.
As filmagens apostaram em locações reais em Londres, especificamente em bairros como Brixton, Eltham e Bow. Um dos marcos do design de produção foi a transformação do Loughborough Hotel em Brixton (que atualmente abriga a San Mei Gallery e o Annapurna Café). A equipe converteu a fachada deste edifício histórico eduardiano em uma loja de departamentos de luxo, enchendo as vitrines de manequins e presentes. A transformação foi tão convincente que exigiu a presença de consultores da Polícia Metropolitana para evitar que os vizinhos ligassem alarmados ao ver um “roubo” em seu café local.
O acidente com a vela estrelinha
O compromisso com o realismo trouxe consigo anedotas perigosas. Olivia Holt revelou que, durante uma pausa nas filmagens para assistir a um casamento, uma vela estrelinha (sparkler) atingiu acidentalmente seu olho, queimando seus cílios e causando uma lesão térmica. Ela teve que voar de volta para Londres no dia seguinte para continuar as filmagens com o olho ferido. “A caminhante sobre o fogo queima o olho”, brincou a atriz sobre a ironia do incidente, demonstrando seu profissionalismo ao não paralisar a produção.
Um presente embrulhado em tensão
Feliz Assalto! representa uma evolução madura do conteúdo festivo da Netflix. Ao combinar o talento de uma roteirista de Bridgerton, um diretor especialista em atmosfera visual e a música de um inovador como Hackman junto a Gwen Stefani, o filme aspira a ser mais do que apenas conteúdo para encher catálogo. É uma história sobre o desespero econômico embrulhada em papel de presente brilhante, onde a melhor lembrança não está debaixo da árvore, mas no cofre dos Sterling. A estreia mundial desta esperada produção está programada exclusivamente na Netflix para o dia 26 de novembro.

