“Limpa”, de Dominga Sotomayor, navega entre classe e cumplicidade na adaptação de um aclamado romance chileno

Limpa
Veronica Loop
Veronica Loop
Veronica Loop é a diretora administrativa da MCM. Ela é apaixonada por arte, cultura e entretenimento.

Chega à Netflix “Limpa”, um drama chileno sobre as complexas dinâmicas de poder, dependência e afeto. Um filme de personagens, direção e, acima de tudo, de atuação.

Um mundo íntimo e inquietante: a narrativa de “Limpa”

A premissa do filme se estabelece na intensa relação entre suas duas protagonistas: Estela, uma empregada doméstica vinda do sul do Chile, e Julia, a menina de seis anos de quem ela cuida dia e noite no seio de uma família rica, mas emocionalmente distante. A narrativa mergulha no vínculo que elas criam, um universo particular que as isola e as une diante da indiferença de seu entorno.

Este universo compartilhado se nutre de rituais íntimos, como cantar canções antigas ou passear pelo bairro com uma cadela de rua, momentos que solidificam uma cumplicidade que transcende a relação de trabalho. O filme utiliza essa dinâmica interpessoal como um microcosmo para examinar tensões sociais de maior envergadura, próprias da sociedade chilena e, por extensão, latino-americana.

A trama aborda explicitamente os sentimentos de Estela, que se sente “invisível e frustrada”, e a experiência de Julia, que sofre um “profundo abandono” por parte de sua família. Ao fazer isso, o filme se torna um comentário social sobre as hierarquias de classe, a invisibilidade do trabalho doméstico и as consequências da negligência emocional. Os elementos dramáticos se enraízam na vida emocional das protagonistas, enquanto o suspense do thriller se alimenta das consequências psicológicas de seu isolamento e dependência. Este equilíbrio é fraturado por um “incidente trágico” que rompe sua cumplicidade e muda suas vidas para sempre, catalisando o mencionado desfecho inevitável.

Da página para a tela: a base literária

A solidez temática e narrativa de “Limpa” tem sua origem em uma aclamada obra literária. O filme é uma adaptação do romance homônimo da escritora chilena Alia Trabucco Zerán, um fato destacado em todo o material promocional do filme. Longe de ser uma obra menor, o romance é um best-seller premiado que conquistou importante reconhecimento internacional. Seu maior testemunho de prestígio é a conquista do Prêmio Femina de melhor romance estrangeiro em 2024, um dos mais importantes prêmios literários da França.

O romance original se enquadra na tradição do “realismo sujo” e se estrutura como uma confissão ou um interrogatório. A narração começa com um fato inegável: a menina morreu, e Estela, a protagonista, conta sua história a partir de uma aparente detenção, tornando-se uma narradora não confiável cuja versão dos fatos é tão fascinante quanto ambígua. Este relato em primeira pessoa explora sua rotina diária até transformá-la em um “pesadelo repetitivo e finalmente violento”, revelando as relações de poder dentro do lar.

Além do drama doméstico, o romance está profundamente ancorado na história recente do Chile. A trama se desenrola com o pano de fundo da “explosão social” de 2019, uma série de protestos massivos contra a desigualdade que abalaram o país. Este contexto transforma a tensão dentro da casa em um símbolo da opressão de classe e do descontentamento social vivido do lado de fora, transformando um thriller doméstico em uma potente declaração política. A força dramática da história já havia sido testada em outro meio antes de sua chegada ao cinema. Em 2024, o romance foi levado ao teatro com uma proposta do reconhecido ator e diretor chileno Alfredo Castro. A jornada da história através de três plataformas distintas — a literatura, o teatro e agora o cinema — evidencia a universalidade e a perenidade de seus temas centrais.

Um perfil da diretora Dominga Sotomayor

A direção de “Limpa” está a cargo de Dominga Sotomayor (Santiago, 1985), uma das figuras mais proeminentes и consolidadas do cinema chileno contemporâneo. Sua trajetória como diretora, roteirista e produtora é marcada por um contínuo reconhecimento no circuito internacional de festivais. Com uma sólida formação acadêmica que inclui uma Licenciatura em Direção Audiovisual pela Pontifícia Universidade Católica do Chile e um Mestrado em Direção Cinematográfica pela ESCAC na Catalunha, Espanha, Sotomayor desenvolveu uma voz cinematográfica coerente e madura.

Sua carreira atingiu um ponto de virada histórico em 2018, quando se tornou a primeira mulher na história a receber o Leopardo de Melhor Direção no prestigioso Festival de Cinema de Locarno por seu longa-metragem Tarde para Morrer Jovem. Este marco não só consolidou seu status como uma cineasta de classe mundial, mas também a posicionou como uma figura pioneira em uma indústria historicamente dominada por homens.

Sotomayor expressou que prefere falar de “adoção” em vez de “adaptação” ao se referir à sua relação com o romance de Trabucco Zerán. Essa escolha semântica revela uma apropriação do espírito do texto para transportá-lo para seu universo pessoal, em vez de uma simples reprodução. Segundo suas próprias declarações, ela não aceitou o projeto imediatamente; sua decisão dependeu de uma leitura profunda para determinar se poderia torná-lo seu, um processo que demonstra um meditado compromisso artístico. A diretora reconheceu que os projetos que a incomodam são os que a impulsionam criativamente, e os desafios deste filme — trabalhar sobre a obra de outra pessoa e para uma grande plataforma — parecem ter aguçado sua capacidade de observação. Tematicamente, sua filmografia mostra um fascínio recorrente por momentos de transição na vida de crianças e adolescentes, frequentemente situados em contextos de mudança social ou histórica mais amplos. Este foco na juventude como barômetro de transformações maiores estabelece um claro precedente para “Limpa”, tornando-o uma extensão lógica e poderosa de sua voz autoral.

A força criativa

Por trás de “Limpa” está uma das produtoras mais influentes e bem-sucedidas da América Latina: a Fabula, companhia fundada pelos irmãos Juan de Dios e Pablo Larraín. Ao lado deles, Rocío Jadue figura como uma produtora-chave no projeto. A participação da Fabula não é um detalhe menor; funciona como um selo de qualidade e uma garantia de ambição artística e alcance global.

O pedigree da Fabula é inquestionável. A companhia alcançou fama internacional ao ganhar o Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira em 2018 por Uma Mulher Fantástica. Seu prestígio foi reafirmado com duas indicações ao Oscar em 2024 por O Conde (Melhor Fotografia) e A Memória Infinita (Melhor Documentário), além de uma longa lista de prêmios em festivais como Veneza, Berlim e Sundance. Seu envolvimento eleva “Limpa” de uma produção local a um longa-metragem destinado ao mercado internacional desde sua concepção.

Além disso, a Fabula cultivou uma sólida experiência na produção de conteúdo para as principais plataformas de streaming. Sua relação com a Netflix é preexistente e estratégica, tendo produzido para a gigante do streaming séries como Baby Bandito e o documentário Antares de la Luz: A Seita do Fim do Mundo. Em alguns dos créditos de “Limpa”, a Netflix figura inclusive como uma entidade de produção junto à Fabula, o que sugere uma associação mais profunda do que um simples acordo de distribuição.

O elenco é encabeçado pela atriz María Paz Grandjean no papel de Estela, enquanto a jovem Rosa Puga Vittini interpreta Julia. O elenco principal se completa com Ignacia Baeza (também creditada como Ignacia Baeza Hidalgo), Benjamín Westfall e Rodrigo Palacios. O roteiro foi coescrito pela diretora Dominga Sotomayor e Gabriela Larralde, garantindo uma visão coesa desde a escrita até a direção. A equipe criativa se enriquece com o talento da aclamada diretora de fotografia Bárbara Álvarez e do compositor Carlos Cabezas, cujos trabalhos anteriores auguram uma cuidadosa estética visual e sonora.

A jornada para uma audiência global

O percurso começou com uma estreia mundial em um palco de primeiro nível: a 73ª edição do Festival Internacional de Cinema de San Sebastián. O filme teve a honra de inaugurar a prestigiosa seção Horizontes Latinos, um espaço competitivo dedicado a destacar o melhor do cinema da região. A première contou com a presença de figuras-chave do projeto, incluindo a diretora Dominga Sotomayor, a atriz principal María Paz Grandjean e os produtores Juan de Dios Larraín e Rocío Jadue, sublinhando a importância do evento.

Após sua aclamada estreia internacional, o filme teve um lançamento limitado em cinemas selecionados em seu país de origem, o Chile. Esta janela de exibição local permitiu que o público chileno se conectasse com a obra na tela grande antes de sua distribuição em massa. As projeções no Chile começaram em 25 de setembro. Por fim, o filme, rebatizado como “Swim to Me” para o mercado global, se prepara para seu lançamento mundial na plataforma Netflix. Essa distribuição garante que a história chegará a uma audiência massiva em múltiplos territórios simultaneamente. A data de estreia global na Netflix está marcada para amanhã, 10 de outubro.

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