Somos habitantes de um constructo computacional, e não de uma “realidade-base” independente da mente? A questão da simulação nos obriga a voltar aos primeiros princípios: o que conta como evidência? O que é uma lei física? O que é uma mente? Há duas décadas, o debate vem se cristalizando em torno do Simulation Argument de Nick Bostrom e, mais recentemente, em torno da tentativa de Melvin Vopson de reinterpretar as regularidades físicas como efeitos da dinâmica da informação. Em conjunto, esses projetos convidam a um escrutínio neutro, porém persistente: se o mundo fosse um programa, o que — se é que algo — deveria parecer diferente? E, se nada mudasse, tratar-se-ia de uma tese explicativa, científica ou meramente metafísica?
Enquadramento da hipótese: pretensões filosóficas vs. físicas
A hipótese da simulação costuma ser apresentada em dois registros. O primeiro é filosófico e diz respeito à probabilidade e às classes de referência: dadas certas suposições sobre civilizações futuras e poder computacional, quão provável é que seres com experiências como as nossas sejam simulados? O segundo é físico e aborda a estrutura das leis naturais: se a informação é fundamental, poderiam forças, simetrias ou tendências termodinâmicas emergir de uma otimização de tipo computacional?
Ambos os registros aguçam o problema, mas o expõem a críticas distintas. Em filosofia, os pontos frágeis são as suposições introduzidas de forma tácita no cálculo probabilístico e a escolha da classe de observadores. Em física, as preocupações centrais são a testabilidade, a subdeterminação e o risco de reescrever a física conhecida em metáforas computacionais sem ganho de poder preditivo.
O argumento de Bostrom: um trilema, não um veredicto
A contribuição de Bostrom é frequentemente lida — de modo equivocado — como a afirmação de que estamos simulados. Na verdade, trata-se de um trilema: (1) quase nenhuma civilização atinge o estágio “pós-humano”; ou (2) quase nenhuma civilização pós-humana executa um número significativo de simulações de ancestrais; ou (3) quase certamente vivemos em uma simulação. A força do argumento é tornar o realismo complacente epistemicamente desconfortável: uma vez que se conceda a mente independente de substrato e a viabilidade de emulações em larga escala, a “classe de referência” de observadores como nós passa a ser dominada por simulados.
Alguns pontos de pressão merecem destaque:
- Problema da classe de referência. O peso probabilístico do argumento depende de quem conta como “como nós”. Se a classe é definida por fenomenologia (ter experiências como as nossas), os simulados dominam. Se é definida por origem causal (primatas evoluídos biologicamente), os não simulados dominam. Sem teoria adicional, não há modo não circular de escolher a classe.
- Premissas agnósticas. As duas premissas que fazem o trabalho — mente independente de substrato e emulação realizável — são discutíveis. Emular pode exigir não apenas computação astronômica, mas também modelagem de alta fidelidade de sistemas quânticos em decoerência e de acoplamentos ecológicos incorporados, levando a factibilidade muito além dos “chutes” de ordem de grandeza.
- Embaraço decisionista. Se o terceiro corno do trilema fosse verdadeiro, como deveríamos agir? A recomendação pragmática de Bostrom — “seguir em frente” — é sensata, mas evidencia uma assimetria: uma tese que não orienta a ação nem discrimina previsões corre o risco de tornar-se uma elegância sem consequências.
Lido com caridade, o mérito do argumento está em ampliar o espaço das possibilidades sérias sem reivindicar fechamento probatório. Ele funciona melhor como teste cético de resistência aplicado às nossas suposições de fundo sobre tecnologia, consciência e tipicalidade.
A infodinâmica de Vopson: da imagem ao mecanismo
Onde o trilema opera no plano abstrato, Vopson mira o mecanismo. Ele propõe que a dinâmica da informação obedece a uma “segunda lei” distinta da entropia termodinâmica: em sistemas informacionais fechados, a entropia da informação tende a diminuir ou permanecer constante, impulsionando compressão e otimização. A partir daí, esboça como tal princípio poderia iluminar padrões recorrentes — na evolução genética, na simetria matemática e até na gravidade — ao tratar o mundo como um sistema de processamento de informação que busca economia representacional.
O salto é arrojado: da metáfora (“o universo é como um computador”) para a hipótese operacional (“as regularidades físicas emergem de pressão por compressão”). Destacam-se algumas teses:
- Compressão como tendência unificadora. Se os sistemas evoluem rumo a uma complexidade descritiva mínima, devemos observar convergências para simetria, regularidade e códigos eficientes. A “legalidade” deixaria de ser um fato bruto para tornar-se subproduto emergente de uma contabilidade informacional.
- “Células” discretas de espaço-tempo. Ao modelar a realidade como uma malha de unidades portadoras de informação, podem-se derivar dinâmicas em que aproximar a matéria reduz o número de descritores de estado necessários — gerando o comportamento atrativo que chamamos gravidade.
- Vínculo massa–energia–informação. Se a informação é física, ela pode carregar atributos energéticos ou de massa, reconfigurando enigmas como a matéria escura em termos informacionais e motivando testes de laboratório baseados no “apagamento” de informação.
O apelo do programa é claro: promete pontes testáveis entre a teoria da informação e a física fundamental. Mas o padrão deve ser elevado. Recontar regularidades conhecidas na linguagem da compressão não basta; o que importa é a previsão nova e discriminante. A infodinâmica antecipa alguma anomalia quantitativa que os modelos padrão não preveem? Retrodeduz constantes estabelecidas sem parâmetros livres? Seus compromissos “em grade” podem ser falsificados por medições de precisão que seriam diferentes se a realidade fosse contínua?
O que contaria como evidência?
Uma avaliação madura exige esclarecer o que tornaria a hipótese da simulação — ou seu avatar infodinâmico — vulnerável à evidência. Algumas vias são frequentemente discutidas:
- Artefatos de grade. Se o espaço-tempo fosse discretizado em uma malha computacional, processos de energia extremamente alta (p. ex., raios cósmicos) poderiam revelar anisotropias sutis ou relações de dispersão alinhadas com os eixos da grade. A ausência de tais assinaturas fixa limites inferiores para a escala de discretização.
- Tetos de complexidade. Um simulador finito poderia impor limites de recursos — à profundidade do emaranhamento quântico, por exemplo, ou à complexidade de padrões de interferência. Experimentos poderiam buscar pontos de saturação inesperados não previstos pela teoria padrão.
- Assimetrias termodinâmicas. Se uma segunda lei informacional diverge da entropia térmica, sistemas de informação “fechados” e cuidadosamente construídos podem exibir direcionalidade (rumo à compressão) irredutível à mecânica estatística convencional.
- Custo energético do apagamento. O princípio de Landauer já vincula o apagamento de informação à dissipação de calor. Vínculos mais fortes e não redundantes — por exemplo, déficits de massa associados ao apagamento — seriam decisivos se observados de forma limpa, isolados da dissipação ordinária.
Cada caminho enfrenta obstáculos conhecidos: precisão metrológica, efeitos de fundo e, sobretudo, subdeterminação. Um sinal compatível com simulação pode ser igualmente compatível com teorias não simulacionistas (propostas de gravidade quântica, espaço-tempo emergente ou análogos inovadores em matéria condensada). O risco é a deriva confirmatória: enxergar padrões “amigáveis à computação” onde múltiplos arcabouços já preveem fenômenos similares.
Cautelas metodológicas: quando as analogias exageram
Três cautelas metodológicas moderam conclusões apressadas:
- A metáfora da tecnologia dominante. Culturas compararam o cosmos à melhor máquina de sua época: relógio, motor, hoje computador. Metáforas fecundas como heurísticas, elas arriscam erro de categoria se promovidas a ontologia sem ponderar seu poder explicativo diante de rivais.
- Contabilidade explicativa. Renomear “gravidade” como “compressão de informação” não pode limitar-se a trocar o rótulo do explanandum. Profundidade mecanicista exige mostrar como a nova descrição reduz parâmetros livres, unifica fenômenos díspares ou resolve anomalias sem andaimes ad hoc.
- Contabilidade bayesiana. Priors importam. Se se atribui probabilidade prévia baixa à mente independente de substrato ou à emulação viável em escala de ancestrais, a probabilidade a posteriori de “estamos simulados” permanece baixa mesmo com verossimilhanças ao estilo Bostrom. Inversamente, priors muito amplos diluem a disciplina evidencial.
Derivações éticas e existenciais (qualquer que seja a ontologia)
A hipótese também cativa porque redesenha um terreno ético conhecido:
- Ética do design. Se seres futuros puderem instanciar vidas conscientes em software, nossas decisões atuais sobre IA, agentes virtuais e emulações em massa adquirem peso moral. A questão retorna como política pública: devemos criar mundos povoados por mentes capazes de sofrer?
- Sentido sem garantias metafísicas. Mesmo que a realidade fosse computada, os projetos humanos — cuidado, conhecimento, arte — não se evaporam. O valor supervém da experiência e da relação, não do substrato. A postura prática é, portanto, robusta entre ontologias.
- Humildade epistêmica. A hipótese lembra que nossos modelos podem ser compressões locais de uma ordem mais profunda. Essa humildade alimenta uma ciência melhor, com ou sem “silício” na base do universo.
Uma apreciação neutra
Onde fica um observador acadêmico consciencioso?
- O trilema de Bostrom continua sendo um desafio poderoso ao realismo ingênuo, mas seu fio depende de premissas discutíveis e de escolhas sobre classes de observadores que a filosofia ainda não fixou.
- O programa de Vopson é promissor como agenda de pesquisa na medida em que produza previsões nítidas e arriscadas que a física padrão não oferece. Seu valor será medido menos pela ressonância retórica e mais pela economia explicativa e tração empírica.
- Como pretensão científica, a hipótese da simulação só ganha credibilidade quando “paga aluguel” em previsões. Como teste filosófico de pressão, já o faz ao disciplinar suposições sobre tipicalidade, corporeidade e mente.
A atitude intelectualmente honesta não é nem credulidade nem desdém, mas curiosidade crítica contínua. Se trabalhos futuros derivarem assinaturas quantitativas — anisotropias alinhadas a uma grade com leis de escala específicas, efeitos massa–energia ligados à informação para além de Landauer, ou tetos de complexidade inexplicáveis na teoria padrão —, o balanço de razões mudará. Na ausência disso, a tese da simulação permanece uma opção metafísica viva e uma heurística fecunda, ainda não uma hipótese empiricamente preferida.
Conclusão: o valor da pergunta
Perguntar se vivemos uma simulação não é um jogo de ontologia especulativa. É uma alavanca que abre várias dobradiças da investigação: como surgem as mentes, por que as leis são simples, o que é informação. Bostrom nos ensina a rastrear nossas suposições sobre a distribuição de observadores; Vopson nos desafia a converter “informação é física” em mecanismos que corram o risco de estar errados. A previsão mais segura é que, independentemente da verdade última da hipótese, os métodos desenvolvidos no caminho — classes de referência mais finas, vínculos mais estreitos entre informação e dinâmica, experimentos mais discriminantes — enriquecerão nossa compreensão do mundo que habitamos, simulado ou não.
Até que um teste decisivo discrimine “realidade-base” de “realidade emulada”, devemos evitar tanto a certeza complacente quanto o ceticismo performativo. Em vez disso, deixemos que a pergunta faça seu melhor trabalho: refinar nossos padrões de evidência, esclarecer nossas ambições explicativas e ampliar a fronteira onde física, computação e filosofia se encontram. Se a cortina puder ser puxada, será por essas virtudes — não por slogans, mas por resultados.
Fontes
- Bostrom, Nick. “Are You Living in a Computer Simulation?” The Philosophical Quarterly 53, nº 211 (2003): 243–255.
- Eggleston, Brian. “A Review of Bostrom’s Simulation Argument.” Stanford University (material do curso symbsys205), síntese do raciocínio probabilístico de Bostrom.
- Vopson, Melvin M. “The Second Law of Infodynamics and its Implications for the Simulation Hypothesis.” AIP Advances 13, nº 10 (2023): 105206.
- Vopson, Melvin M. “Gravity Emerging from Information Compression” (AIP Advances, 2025) e comunicações associadas da University of Portsmouth.
- Orf, Darren. “A Scientist Says He Has the Evidence That We Live in a Simulation.” Popular Mechanics, 3 de abril de 2025.
- Tangermann, Victor. “Physicist Says He’s Identified a Clue That We’re Living in a Computer Simulation.” Futurism, 3 de maio de 2023.
- IFLScience (ed.). “Physicist Studying SARS-CoV-2 Virus Believes He Has Found Hints We Are Living In A Simulation.” Outubro de 2023.
- Vopson, Melvin M. Reality Reloaded: How Information Physics Could Explain Our Universe. 2023.
- Contexto clássico de ceticismo filosófico: “Alegoria da caverna”, de Platão; René Descartes, Meditações sobre a Filosofia Primeira (enquadramento histórico).