Um novo drama musical biográfico, Homem com H, já está disponível para streaming na Netflix, levando a história de um dos artistas mais influentes e provocadores do Brasil, Ney Matogrosso, para uma audiência global. O filme, dirigido e escrito por Esmir Filho, narra a vida do icônico cantor, cuja carreira desafiou a repressão política e redefiniu as noções de gênero e performance na América Latina. O filme chega à plataforma após um sucesso de bilheteria no Brasil, onde atraiu mais de 620.000 espectadores, arrecadou mais de R$ 13 milhões e se tornou um dos filmes mais bem avaliados do ano no site de críticas Letterboxd. Embora o título oficial do filme seja uma referência direta a uma das canções mais famosas de Matogrosso, ele está sendo lançado internacionalmente com títulos como Latin Blood – The Ballad of Ney Matogrosso. Esse título alternativo, referenciando outra das célebres canções do artista, “Sangue Latino”, aponta para uma estratégia de marketing que prioriza um tema mais amplo de identidade pan-latina para públicos não familiarizados com as nuances da cultura brasileira. O título original, Homem com H, no entanto, permanece central para a mensagem do filme, apropriando-se de uma expressão coloquial de virilidade para celebrar um artista que a desmontou.

O filme apresenta uma narrativa de libertação forjada na ousadia. A trama acompanha Ney de Souza Pereira, que mais tarde adotaria o nome artístico Ney Matogrosso, em uma jornada pelas fases cruciais de sua vida. Desde uma infância no coração do Brasil, marcada pela paixão pela natureza e pela autoridade opressora de um pai militar emocionalmente distante, a história traça seu caminho pela adolescência até a vida adulta, onde ele despedaçaria preconceitos para se tornar uma força cultural. O roteiro, baseado na biografia Ney Matogrosso: A biografia, de Julio Maria, enquadra a persona pública de Matogrosso como resultado direto de suas lutas privadas. Sua identidade artística, caracterizada pela liberdade radical, é mostrada não como uma mera escolha estética, mas como uma resposta necessária a uma vida inteira de confronto com a autoridade, um tema que o diretor Esmir Filho identificou como o cerne da história. Esse tema central é explorado através dos relacionamentos-chave que definiram sua vida: o conflito fundamental com seu pai, Antônio; o caldeirão criativo de sua primeira banda, Secos & Molhados; e o profundo amor e perda vividos em seus relacionamentos com outros músicos, incluindo o icônico roqueiro brasileiro Cazuza e seu parceiro Marco de Maria. O filme aborda a crise da AIDS dos anos 1980, que afetou profundamente o círculo de Matogrosso, com um foco respeitoso no elemento humano do medo, do preconceito e da insegurança que as pessoas sentiam, em vez de tornar a doença o único foco da narrativa.
O verdadeiro Ney Matogrosso foi um fenômeno cultural cujo impacto se estendeu muito além da música. Classificado pela Rolling Stone como o terceiro maior cantor latino-americano de todos os tempos, ele surgiu na cena brasileira em 1971 como o vocalista da banda de glam-folk Secos & Molhados, ao lado de João Ricardo e Gerson Conrad. Com sua voz de contratenor única e aguda e sua presença de palco andrógina, ele se tornou uma sensação instantânea. O grupo vendeu um milhão de discos em menos de dois anos, uma conquista impressionante. Após a separação da banda, Matogrosso lançou uma carreira solo ainda mais provocadora e bem-sucedida, definida por figurinos extravagantes, maquiagem elaborada e movimentos ousados e fluidos. Sua combinação de arte de vanguarda e sucesso comercial massivo foi notável; ele não era um artista de nicho, mas uma estrela popular que levou a performance transgressora e com códigos queer para os lares de milhões de pessoas com sucessos como “América do Sul” e “Bandolero”. Isso o tornou impossível de ser ignorado, forçando uma conversa nacional sobre identidade e liberdade.
Sua ascensão à fama coincidiu com o período mais repressivo da ditadura militar no Brasil. O Secos & Molhados apareceu em cena justamente quando o regime, que começou em 1964, entrava em sua fase mais severa, os anos de chumbo, após o decreto do Ato Institucional nº 5 em 1968. Enquanto alguns grupos de esquerda se engajavam na luta armada contra o Estado, Matogrosso travava um tipo diferente de guerra. Sua rebelião era estética. Seu corpo, sua voz e suas performances tornaram-se locais de resistência política. Abertamente fluido em sua sexualidade em uma época de conservadorismo rígido, ele desafiou o status quo com um estilo andrógino que não era nem tradicionalmente masculino nem feminino. Seu trabalho foi além da simples oposição ao governo; foi um movimento contracultural que se rebelou contra normas sociais mais amplas relativas à música, ao nacionalismo e ao próprio corpo. Ao atingir um nível de popularidade que rivalizava com qualquer artista mainstream, ele demonstrou que a subversão cultural poderia ser uma ferramenta poderosa contra o autoritarismo, desafiando o poder ao reconfigurar a compreensão da cultura sobre a identidade.
A visão do diretor Esmir Filho para Homem com H foi traduzir essa força vital em linguagem cinematográfica. O filme evita conscientemente a estrutura formulaica de “maiores sucessos” de muitas cinebiografias. Em vez disso, busca ser uma experiência vibrante, sensorial и emocional que permite ao público sentir a essência da energia de Matogrosso. O diretor afirmou que suas escolhas estéticas foram baseadas na “pulsação erótica” e no “desejo” que emanam do artista, criando um filme sobre o impulso pela liberdade. Em colaboração com o diretor de fotografia Azul Serra, Filho cria um mundo visual íntimo e altamente simbólico, caracterizado por cores quentes e saturadas, um uso frequente de closes que refletem o conflito interno do protagonista e um conceito poético recorrente de “animalidade”. O design de som do filme é igualmente imersivo, tecendo uma trilha sonora de 17 canções que não são meramente ilustrativas, mas servem como marcos das transformações internas do personagem. Clássicos como “Sangue Latino”, “Rosa de Hiroshima” e “Homem com H” carregam um peso emocional e narrativo significativo, reforçando a jornada de autoconstrução do artista. O objetivo declarado do diretor era criar uma experiência para ser mais bem apreciada no cinema, onde sua riqueza visual e auditiva pudesse ser totalmente absorvida.
No coração do filme está uma atuação amplamente elogiada do ator Jesuíta Barbosa. A crítica aclamou Barbosa por sua “caracterização perfeita e trabalho corporal impressionante”, capturando os trejeitos e a presença de Matogrosso com uma precisão espantosa. Sua atuação é descrita não como uma interpretação, mas como uma forma de canalização, uma “possessão” ou “transe” onde ele incorpora plenamente o espírito do artista. Esta performance é notada por seu raro equilíbrio entre a exuberância do palco e uma vulnerabilidade crua fora dele. Uma escolha artística crucial foi feita em relação aos números musicais: Barbosa encarna a fisicalidade das performances, mas a voz ouvida é a do próprio Ney Matogrosso, usando gravações originais. Essa decisão cria uma dualidade poderosa, evitando a armadilha comum de um ator tentando imitar uma voz lendária. O público vê a luta emocional e física do personagem através da performance de Barbosa, enquanto ouve o poder autêntico e transcendente da arte de Matogrosso. Isso separa o homem mortal de sua voz imortal, criando uma experiência em camadas que é tanto um drama humano envolvente quanto uma autêntica celebração musical.
O título do filme é, por si só, um ato de profunda ironia e uma chave para seu tema central. No Brasil, “homem com H” é um coloquialismo para um homem que exibe virilidade e coragem tradicionais e inabaláveis. A canção de mesmo nome usa imagens do folclore brasileiro, como cobras e lobisomens, para evocar provações de machismo. Ao intitular um filme sobre um artista que dedicou sua vida a desmontar esse mesmo conceito com essa frase, os cineastas lançam um desafio. O título força o público a reconciliar o termo com a realidade fluida, andrógina e queer de seu tema. É uma reapropriação da linguagem das normas patriarcais para celebrar uma figura de libertação. Como observou o diretor Esmir Filho, Matogrosso “subverteu a coreografia do masculino”, provando que era possível ser homem com qualquer letra, não apenas a prescrita pela sociedade. O filme argumenta que Matogrosso é o “Homem com H” definitivo precisamente porque teve a coragem de rejeitar todas as definições pré-estabelecidas, demonstrando que a verdadeira força reside na autenticidade, não na conformidade. Homem com H é mais do que uma biografia; é uma declaração estética e política, um filme que entende que a arte é um ato de desobediência e que nenhum rótulo pode conter um artista tão singular quanto Ney Matogrosso.
O filme estreou nos cinemas brasileiros em 1º de maio de 2025. Sua estreia mundial ocorreu durante o encerramento do 27º Festival de Cinema Brasileiro de Paris, em 6 de maio de 2025. O filme foi lançado para streaming global na Netflix em 17 de junho de 2025.