‘Apocalipse nos Trópicos’ da Netflix: Uma democracia no limite, um alerta para o mundo

14/07/2025 3:58 AM EDT
Apocalipse nos Trópicos – Netflix
Apocalipse nos Trópicos – Netflix

Um presidente que rejeita resultados eleitorais, alega fraude e chama a mídia de “fake news” incita uma multidão enfurecida a invadir o congresso da nação. Este cenário, embora familiar ao público americano, é o tema do novo documentário da cineasta brasileira indicada ao Oscar, Petra Costa, que foca na turbulenta ascensão e queda do presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro. O filme, Apocalipse nos Trópicos, é uma continuação temática do trabalho anterior de Costa, Democracia em Vertigem, que dissecou as crises políticas que levaram à ascensão de Bolsonaro. Este novo documentário argumenta que, para entender a história recente do Brasil, é preciso olhar para além dos políticos e examinar uma força mais profunda e poderosa: a ascensão meteórica do cristianismo evangélico como poder político. O filme apresenta uma nação onde a linha entre democracia e teocracia se tornou perigosamente tênue, enquadrando a história do Brasil não como um evento isolado, mas como um estudo de caso arrepiante e um alerta urgente para outras democracias que enfrentam a maré global do populismo de direita. Ele usa a experiência brasileira para realizar uma autópsia de um modelo específico de decadência democrática, que começa com uma crise política que corrói a confiança do público nas instituições seculares, criando um vácuo espiritual avidamente preenchido por ideologias religiosas absolutistas que ameaçam o próprio Estado.

Apocalipse nos Trópicos
Apocalipse nos Trópicos

O poder por trás do trono: O fazedor de reis e seu receptáculo

Em uma escolha narrativa deliberada, o documentário descentraliza Jair Bolsonaro. Embora sua presença seja constante, o filme o retrata menos como um cérebro por trás das ações e mais como um receptáculo: um fantoche carismático, mas ideologicamente oco, alimentado com frases de efeito por seu círculo íntimo. O verdadeiro protagonista deste drama político é Silas Malafaia, um televangelista pentecostal rico, influente e autopromotor. O filme, que obteve um acesso extraordinário e de vários anos a Malafaia, o apresenta como o “Fazedor de Reis”, um título que ele abraça. Ele é o mestre das marionetes, o motor ideológico por trás do trono. Usando sua vasta plataforma de mídia como púlpito, Malafaia enquadra a política brasileira como uma guerra cultural existencial, uma batalha santa entre os valores familiares tradicionais e uma agenda de esquerda “satânica”. O filme revela sua adesão à teologia do domínio, uma crença de que os cristãos têm o mandato de assumir o controle das “sete montanhas de influência” da sociedade — família, religião, educação, mídia, artes, negócios e governo.1 Essa dinâmica expõe uma fórmula política potente: o fazedor de reis fornece a justificativa teológica e a rede de base, enquanto o líder político fornece o apelo populista. O vazio ideológico do receptáculo não é uma falha, mas uma característica, permitindo que ele se torne uma tela em branco na qual a agenda do movimento é projetada, com a devoção de seus seguidores direcionada não às políticas, mas à sua percebida unção divina.

A mudança tectônica: Mapeando a ascensão de uma fé política

O documentário baseia seu argumento em uma “mudança tectônica” na sociedade brasileira: o crescimento explosivo da população evangélica de apenas 5% para mais de 30% em quatro décadas, uma das transformações religiosas mais rápidas da história moderna.2 O filme traça as origens desse movimento até a Guerra Fria, postulando que a vertente do evangelicalismo de direita que agora domina a política brasileira é, em grande parte, uma importação dos EUA.2 Nas décadas de 1960 e 70, enquanto uma progressista e socialmente engajada “teologia da libertação” ganhava força na Igreja Católica da América Latina, os interesses políticos dos EUA a viam como uma ameaça comunista.2 Em resposta, Washington canalizou apoio para missionários evangélicos americanos como Billy Graham, cujos comícios anticomunistas massivos foram promovidos e transmitidos pela ditadura militar do Brasil.5 Essa intervenção ajudou a cultivar uma forma de cristianismo inerentemente alinhada a políticas conservadoras e autoritárias.6 Nas décadas seguintes, esse movimento cresceu fornecendo serviços sociais e orientação espiritual em comunidades negligenciadas pelo Estado.7 Eventualmente, essa vasta e organizada população foi mobilizada em um bloco político decisivo, tornando quase impossível para um candidato de direita vencer uma eleição nacional sem primeiro cortejar o voto evangélico.8 O filme reformula a crise não como um despertar espiritual repentino, mas como o resultado bem-sucedido de uma estratégia geopolítica onde uma ideologia plantada por razões de política externa amadureceu e se tornou uma força capaz de capturar o Estado.

Desvelando o apocalipse

O título do filme, Apocalipse nos Trópicos, opera em dois níveis. Não se refere apenas à visão cataclísmica do fim do mundo do Livro do Apocalipse, mas também ao significado original grego da palavra apocalipse: uma “revelação” ou “desvelamento”.9 O documentário busca remover o véu sobre a crise do Brasil, revelando a fragilidade de suas estruturas democráticas. Costa emprega um estilo narrativo poético, ensaístico, usando sua própria narração para refletir sobre sua criação secular enquanto lida com o fervor religioso que documenta.11 O filme é estruturado em capítulos com conotações bíblicas, e sua tapeçaria visual entrelaça majestosas tomadas de drone de comícios, imagens brutas feitas com câmera na mão de dentro da máquina política e clipes de arquivo.3 Um poderoso motivo recorrente é o uso de closes de pinturas apocalípticas de artistas como Hieronymus Bosch e Pieter Bruegel, conectando visualmente o drama político contemporâneo a um atemporal quadro teológico de julgamento e guerra santa.12 Essa escolha estética ressalta um argumento central: a teologia do fim dos tempos foi ressignificada como uma ferramenta política.2 O filme expõe uma escatologia, vocalizada por figuras como Malafaia, na qual o caos mundano não é uma tragédia a ser evitada, mas um catalisador potencial para a segunda vinda de Cristo, criando um movimento político não investido em resolver crises, mas talvez em acelerá-las.12

Da praga viral à insurreição política

O capítulo do documentário sobre a pandemia de COVID-19 serve como um estudo de caso contundente dessa visão de mundo em ação. Ele mostra o governo Bolsonaro respondendo à catástrofe de saúde pública não com ciência, mas com oração.14 O número assombroso de mortos no Brasil, um dos mais altos do mundo, é descrito como subindo com “fúria do Antigo Testamento”, enquanto o presidente dava de ombros dizendo que “todos nós vamos morrer um dia”.11 O filme sugere que essa imensa perda apenas tornou uma população desesperada mais ansiosa para acreditar em um líder messiânico.14 A narrativa atinge o clímax com a invasão dos prédios do governo federal em Brasília. Imagens chocantes e em close-up capturam uma multidão violenta depredando o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal e o Palácio do Planalto em um ataque com paralelos deliberados com a insurreição de 6 de janeiro nos Estados Unidos.11 Os atos são apresentados como consequência direta da recusa de Bolsonaro em admitir a derrota e dos apelos de Malafaia por uma intervenção militar.11 Nesse quadro, destruir as instituições democráticas não é niilismo, mas um ato de purificação. Quando um movimento político acredita que a destruição terrena é um pré-requisito para um futuro divino, a violência se torna uma ferramenta legítima e o compromisso, uma impossibilidade.

O capítulo inacabado

Embora Apocalipse nos Trópicos narre o fim da presidência de Bolsonaro, ele oferece uma conclusão sóbria: sua derrota eleitoral não é o fim da história. O poderoso, organizado e profundamente entrincheirado movimento político evangélico que o impulsionou ao poder permanece um elemento permanente no cenário brasileiro.8 O alerta final do documentário é que as forças que borraram as linhas entre igreja e estado não recuaram, e que a jovem democracia secular do Brasil continua perigosamente na corda bamba. O filme, uma produção de empresas como Busca Vida Filmes e Plan B Entertainment, estreia globalmente na Netflix hoje.

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